Seu nome é  Maria.
Ou o que lhe quiserem chamar.

Menina pequenina e ajeitada.
Menina pura, menina madura.
Menina alva.
Menina.

Outrora, talvez.
Que o tempo…
Esse… já lá vai.

De jeito enternecido
Enternecia os que a viam dançar.
E se é boato, não sei,
Mas sei que todos sem excepção
A recordam com um brilho no olhar.

Tal se recorda a si própria
Como se de outra estivesse a falar.
Ou de outras.
Que são duas afinal.

Está doente. E a sua doença parece ser mental.

(Discorda completamente.
E sabe, explicando-o assertivamente,
Que só pelos sonhos se morre
E só por eles se resiste.)

Pestana comprida, volumosa e escurecida
Olho triste.
Da mesma tristeza que carrega nas palavras
Com que me conta a história da sua vida.

Pele seca, estriada e enrugada.
Cabelo lavado,
Tal o resto de seu corpo maltratado.
Não perdera as maneiras de menina mimada.

Mãos pequenas, finas e magras
Desbocadas pelas picadas.

Toque suave, sapiente, subtil
Controlado.
Ar aluado.


Começa pelo ballet.
È o tema que mais lhe interessa.
Seus olhos afinal também sabem brilhar.
Suas palavras retomam qualquer sonoridade mágica
Esquece por instantes a sua história trágica
Põe-se, de novo, a falar.
Orgulhosa de si, não esconde a pressa.
E ergue-se, num rompante apenas, na ponta do pé.

Ao sucumbir à gravidade,
Volta à mudez habitual.
Ela é daquelas que não nasceu para vencer.
Para ser.
È sonhar o seu ritual
Para sobreviver à realidade.

Ela é um misto do que foi e do que era
Um reboliço entre o pretérito perfeito e o pretérito imperfeito
Um põe-na a rir, o outro a chorar.

Ela é Maria, o espelho das almas que sonham demais.

E é dela que vos vou falar.

(Com a devida emoção, se me permitem.
Porque também eu me deixei encantar.)

Maria Perfeita nasce em família abastada
Com futuro seguro e educação aprimorada.
Sua mãe, culta por sinal,
Antevê em sua cria,
Uma artista sem igual.

De diferente das outras meninas,
Para além de beleza singular,
Tinha passos de bailarina
Desde que aprendeu a andar.

Apressou-se em lhe alimentar o sonho
Que orgulho vê-la dançar.
Gira uma, duas, várias vezes.
Depois estende os braços.
Dobra uma perna e depois a outra. Faz meia ponta.
Dá um passo em frente. Volta outro.
Ela quer é ser seguida.
Sabe o que faz.
Conhece-se bem.
Quer ser vista, admirada….
Ela sabe que todos anseiam aplaudi-la
Em qualquer noite, em qualquer dia
Do primeiro passo, ao apagar das luzes.

O sonho cresce. Eleva-se. Voa.
Insano, não mede consequências.
Seu corpo está cada vez mais ágil.
Flexível. Obediente. Apto.
Seus movimentos aperfeiçoados,
Mil vezes ensaiados, decorados…perfeitos.
Seus músculos colaborantes,
Treinados, adaptados, potentes.
Seu coração mais determinado,
Acelerado, oxigenado, apaixonado.

Só a dança faz parte do seu dia
E o sonho ganha forma de vida.

Sem grandes mistérios,
Já perceberam concerteza que a história não tem final feliz.

Era o dia da estreia.
O dia da sua estreia. O mais importante de todos os dias.
Luzes bem acesas,
Orquestra a acompanhar.
Todas pareciam, de facto, uma verdadeiras princesas,
Mas ninguém a podia igualar.

Encantou por cinco minutos,
Até o joelho direito a atraiçoar.
Uma mágoa para a vida,
Impossível de perdoar.

O Seu corpo condenara para sempre a sua alma.

Atirou-a para os escalabouços da madrugada
Nas esquinas que nunca ousara antes pisar.
Refugiou-se na droga,
A única amiga que a poderia salvar.

Entregou-se de corpo e alma.
Que se um era inimigo,
A outra tinha sido mutilada.
Nada havia a perder.
Só a esconder,
Esse ser hediondo em que se tornara.

O sonho permanecia.
E só ele a poderia salvar.
Ela sabia que os drogados morrem.
Em esquinas fedorentas, normalmente.
Mas a alma recompunha-se a cada dose
O Ser Humano é fraco
Porque é que ela tinha que ser forte?

O corpo…esse que morra mesmo.
Pouco ou nada ela queria saber.
Bastava-lhe uns minutos a acreditar
Que poderia voltar a dançar.

Aos poucos a figura ficava informe
O seu joelho era o menor dos seus problemas.
Estava fraca. Subnutrida.
Vivia em função de uma rotina arruinada pela dependência.
Viver para consumir
Sem pensar e sem nada sentir.
Abandonou-se.
Como todos os drogados.
O seu corpo tinha sido o culpado.

Quase que se matava, não fosse a dança.

No hospital, onde tantas vezes foi parar,
E de onde tantas outras acabou por fugir
Houve quem lhe apresentasse as mais diversas alternativas.
Recusou-as. A todas.
Incessante e inconsequentemente.
Houve um ponto, em que relata,
Desistiu até da alma.
Consumia para a overdose.
Queria morrer desesperadamente
Aqui, ali ou acolá,
Ela queria morrer urgentemente.

Faltaram-lhe sempre as forças para se matar.
Quisera faze-lo indefinidas vezes.
Maria Imperfeita ainda acabou por tentar.
Mais mazelas no seu corpo sofrido,
Mais buracos para remendar,
Mais obstáculos para enfrentar.

A certa altura dá por si a acordar numa cama estranha.
O inferno não tem camas.
E se aquilo não era o inferno,
Então onde teria ido ela parar?
Passado umas horas,
Recomposta da (pouca) lucidez que ainda lhe restava
Informaram-na que estava louca.
Sim, porque internarem alguém num hospital psiquiátrico
É carimbar-lhe na testa a palavra “maluquinho”.
E Maria não era maluquinha.
Era uma pessoa amargurada.
Sim.
Azarada.
Mal aventurada.
Mal amada, também.
Sua mãe morrera de doença ruim pouco depois da primeira tragédia da sua vida.
Seu irmão ignorava-a.
Seu pai nem dele sabia.
Restava-lhe o alento que a droga lhe trazia.
E ali não havia droga.
Havia cama, é certo.
Mas não havia droga…

Ali permaneceu.
Hoje cumpre rotinas e está empenhada na sua reabilitação.
Há quase sete meses sóbria, enfrenta o maior dos desafios da sua vida,
Amar-se. À alma e ao corpo. Com a meninice que ainda traz no coração.

Diz ter reencontrado a lucidez, ao som duma caixinha de música que uma enfermeira lhe ofereceu. Reconhece tudo aquilo que perdeu.

O espelho é agora o maior fantasma.
A figura desfigurada é-lhe completamente desconhecida.
Rodopia nas memórias, nas figuras que assumiu.
Estão amarradas ao que vê,
Como se presas por uma corda.
Não se sente ainda.
Mas sente-se em casa na Fisioterapia.
Há música, há dança.
Há alegria.
E ali, ela de facto, pode dançar.

Hoje está feliz por não ter sabido
A forma como tudo acabaria
A forma como tudo aconteceria.

De facto, as nossas vidas estão melhor sob o acaso.
Poderia ter perdido a dor
Mas teria que ter perdido a Dança
 

1 comentário:

ariana_margarida disse...

brilhante Sara, está brilhante
:)